Maio de 2016. Há um ano atrás um acontecimento marcaria para sempre a história desta Casa. Talvez seja difícil ver uma época com tantas reconciliações e grande união entre os moradores. Em que as diferenças foram postas à mesa e transformadas em empatia. Tudo para um bem maior.
Mais precisamente no dia 22 de Maio entre 9 e 11 horas de uma manhã negra e chuvosa uma Assembleia Geral de prestação de contas teve que ser imediatamente cancelada. O motivo: A notícia de falecimento de Eduardo Alves dos Santos, morador e 1º Secretário àquela época.
Para os novos navegantes neste navio cheio de chegadas e partidas, com tempos de mar calmo e céu ensolarado e às vezes com ondas turbulentas em meio a tempestades, temos que descrever um pouco sobre o perfil deste que nos deixava.
Eduardo Alves dos Santos – talvez apenas os professores o chamavam assim nos momentos de chamada – ou "Duda" para sua família e que fez eternizar o nome "Ceará" no interior destas paredes. Chegou à Curitiba aos 17 anos, partindo da cidade de Brejo Santo, próximo a Juazeiro do Norte no interior do Sertão Cearense, de onde saiu como um desbravador, aos olhares admirados de muitos para aquele pequeno prodígio que deveria voltar como um herói. Veio ao Sul para cursar Engenharia Elétrica na UTFPR aonde confirmaria toda a fama que carregava.
Chegou à Celu como um dos calouros sensação do concurso. Como de praxe dos concursos uns se destacam outros esperamos que nos surpreendam outrora. Sua determinação e coragem aliados ao olhar inocente e ao mesmo tempo sonhador foram marcados na frase soltada na banca cultural "Eu quero ser um grande líder!"
E aos poucos fora mostrando que realmente não era brincadeira ou uma simples frase no vale tudo para passar em um concurso. Ao final do semestre suas três ‘parabenizações’ de uma vez resultantes dos departamentos e excelente desempenho acadêmico mostraram para que veio. Durante isso sua simpatia exalante e seus originais "ô viado" (leia-se com um carregado sotaque nordestino) foram se espalhando pelos corredores.
Sempre se questionando sobre as decisões tomadas por aqueles a frente aquela longa mesa naquelas reuniões intermináveis. O nome Assembleia entraria de vez no nosso dicionário, bem como guardião e outras palavras possivelmente bem menos utilizadas tempos atrás. E estas Assembleias com poucos se esforçando para fazer algo a frente da mesa e com todos atrás no fundão com uma notória indiferença para tudo aquilo. Ele, eu e outros no meio daquele fogo cruzado. Era a turma do "calouro não vota".
Três parabenizações. Efetivação. Já poderia sair do meio do fogo cruzado. Vinha chegando uma Assembleia de eleições. A Casa passava por uma grave crise de identidade. Os moradores sem nenhuma motivação, poderiam largar tudo sem qualquer desdém. Tudo caminhava para um futuro incerto. Eis que nosso pequeno grande personagem surge como uma das primeiras inscrições naquele mural sempre pouco lido. Candidatura à 1ª Secretaria. Diretoria. Agora, poderia finalmente ser escutado. Mas ele queria mais. Além de ter voz, ser a voz.
Sua ousadia gerou uma grande influência à sua turma recém integrada. Novatos com vontade de trabalhar e dar um rumo a tudo aquilo. Dia após dia um a um foi tomando coragem e assinando seu atestado de loucura naquele mural.
Com os veteranos sem nenhum interesse e recém calouros aptos a mostrar valores eis que acontece algo que dificilmente se verá algum dia. Após a leitura da ata e ao som de palmas de alívio e espanto praticamente todos os calouros efetivados ocupam cargos na Casa. 4 diretores de departamentos, 2 Conselheiros Deliberativos e 3 membros efetivos e 1 auxiliar na Diretoria. Vale ressaltar um fato que ocorreu nesta assembleia: Um de seus companheiros de leva e departamento fora rebaixado e consequentemente expulso em um caso bastante polêmico e discutido, o que não deve faltar nas mais tradicionais assembleias. Antes da votação para que se fosse dada a sentença, Eduardo solicitou a troca de sua parabenização por um rebaixamento, para que assim se tivesse um coerência e equidade na avaliação do seu diretor.
O resultado foi a reviravolta que teve seu companheiro de expulso à diretor do Departamento em poucos minutos.
Quase metade da Diretoria era formada por recém calouros. Foi um grande desafio para os veteranos ensiná-los tudo para que pudessem entender o que se passava. Atentos, assustados, entusiasmados, porém até quando se dava 03h da manhã e nada das reuniões terminarem. Mas às vezes é preciso que se cortem os galhos velhos e secos e dar espaço àqueles que estão pequenos, mas com um verde que chama a atenção. Quando a árvore diminui sua área é notório que se faça menos sobra, mas em compensação abre-se a janela e aproveite o novo vento que agora sopra mais forte.
Às vezes no meu café da manhã percebo o sol que raramente aparece e vou pescá-lo na janela da sala de TV. E as memórias não me deixam cair a ficha do quão malucos éramos. Mas olho para trás e vejo todos ou pelo menos a maioria dos moradores em volta da mesa, conversando, harmoniosamente.
A Casa estava em outro clima, finalmente as coisas estavam fluindo. A Casa estava interagindo entre si e bem mais com as outras Casas também, principalmente com duas que todos nós sabemos. O resultado disso tudo foram Ruas do Recreio bastante ativas sempre com uma criança mascote e uma musa eleita inconscientemente pelos olhares e pescoços torcidos. Também é de se destacar uma Grande Ceia regada a taças e taças de espumantes e um aniversário de 45 anos em que se viu celuenses negarem fatias de pizza ao início da madrugada.
Outro fato inédito também foi a criação de uma maravilha que fazia a alegria de todos e que não dava tempo para ficar na bad. Sim, Gonna Cry.
Ele, Eduardo, agora Ceará, tinha uma boa parcela nisso tudo. Como um bom nordestino, era alguém que não negava uma boa festa. Pelo contrário, se dependesse dele, teria festa em seu quarto todo final de semana. Não conseguiu. Há dias que chegam provas e outras coisas que necessitam de um pouco mais de concentração. Porém quando tinha, quando tinha...
Às vezes eu comparecia - quando não comparecia, quantos arrependimentos amargos até hoje - o time estava completo. Um pseudo índio da Amazônia, um arretado do sertão cearense, um mineirinho mais experiente contando dos causos, um capixaba sempre querendo mostrar a importância de sua terra, um paulista com seus funks da baixada e o japonês que dispensa comentários. Hora ou outra um ou uma paranaense estava para representar os anfitriões.
Aproveitávamos tanto aqueles momentos que sequer perdíamos tempo para tirar fotos, às vezes, dependendo da hora, apenas segurar o celular consistia numa tarefa de extrema habilidade. Tudo isso resultado de um esporte que um bom preparo físico e a cabeça no lugar e de um nome no mínimo intrigante. Não irei me delongar aqui explicando as regras do ‘FODA-SE’. Basicamente pegue um jogo de cartas misture a álcool, depois bastante álcool e deixe a magia acontecer.
A Celu te ensina várias coisas. Uma das mais importantes é saber se adequar a situação. Você pode ver a mesma pessoa chorando deitada numa mesa agarrada à várias latas de cerveja e outra hora hora vestindo um terno e proferindo as mais diversas palavras difíceis em uma cerimônia envolvendo autoridades e comunidade externa. Eduardo era um desses que mais nos surpreendiam sua eficiência nos trabalhos na secretaria e suas boas notas no curso não condiziam aquele moleque que ao fazer dezoito anos estava cantando meio que gaguejando ao som de Wesley Safadão e ao lado da vodka mais barata possível.
Além de esses dois lados conhecidos por vários, havia tempo aos finais de semana para suas reuniões junto à ordem Demolay de Curitiba, uma sociedade discreta de princípios filosóficos e filantrópicos. Algo de tamanha importância para ele que às vezes ficávamos sem secretário na Assembleia.
Chegou as férias de final de ano. Não pode ir para Casa pois ao completar seus dezoito anos é meio que natural aos velhos meninos uma outra fase de independência: A carteira de motorista. Não pode retornar à Brejo Santo, mas foi à São Paulo, onde reside alguns tios e ficou lá até o Ano Novo. Chegando ele me adotou como sua provisória véia. Naqueles meses, nós que já éramos próximos conseguimos ter outra sintonia, até chegar ao ponto do tanto de sal no arroz que ficaria bom para os dois. Ali me contou um pouco dos seus sonhos, suas ambições. Realizar suas ações sociais junto à ordem Demolay, ser um futuro presidente da Casa e posteriormente ao concluir seu curso ingressar na área Acadêmica e se tornar um grande pesquisador.
É compreensível que alguém não queira se empregar em uma empresa, afinal, "Trabalhar dá muito trabalho." Como ele próprio dizia. Não cheguei a ter a certeza do tipo de pesquisas que ele queria fazer ou até mesmo algum objetivo, mas conhecendo ele bem, não seria algo modesto.
As coisas iam bem, até que se calcularam as contas. Não é nenhuma novidade a Ceia de Natal ultrapassar um pouco seu valor orçado. E a hora da Assembleia de Prestação de Contas seria o calvário ou a redenção. Os ânimos de todos já iam se aflorando novamente. Para não ajudar ainda, os moradores estavam com um certo descompromisso quanto ao pagamento das mensalidades, algo que sobraria para o Segundo Tesoureiro. Todos apreensivos, mas nesses momentos era incrível como conseguia sorrir e fazer piadas, chegava a irritar. Talvez ele estivesse mais tranquilo no sábado já que não participaria da Assembleia por viajar junto à Ordem Demolay.
Para esfriar minha cabeça reclamei com todos que falavam comigo e fugi a noite para meus padrinhos. A noite passou tão rápido que nem percebi. Quando sai a pegar o ônibus debaixo de chuva com o cachorro me seguindo até o ponto me cercando molhado estranhei. Parecia que queria me falar alguma coisa.
Cheguei atrasado, sem saber o que dizer ou falar. Era certo que minha cabeça ia rolar. Eis que chego em frente à porta e vejo 80 pessoas tristes subindo as escadas de repente parando, me olhando e voltando a subir mais tristes ainda. Ali tive a certeza que teria sido expulso com a Assembleia sendo bem mais rápida. Já apreensivo e um pouco sem saber o que fazer tento abrir meu quarto com a chave molhada, até que recebo um abraço forte do vizinho de quarto com um desolado "Tudo bem?", depois ativei o wifi para ver um pouco do que tinha se passado antes de arrumar minhas malas.
Quando leio a postagem no Grupo Interno da Casa meu sentimento de centro do Universo cai por Terra. Realmente gostaria que estivesse escrito ali que eu tinha sido expulso. Sem acreditar corro à Secretaria quando me deparo com a cena mais triste da minha vida. O mais velho e experiente da turma de foda-se sendo acolhido pelos mais novos. Era mesmo difícil de a ficha cair. Pouco a pouco todos foram aos seus quartos. Nenhuma luz acesa, nenhum barulho ecoando em pleno dia de Domingo em uma Casa de estudantes no centro de uma capital.
A dor quebra durezas, amolece o coração, enterra o orgulho e faz brotar o perdão. Traz sinceridade e clareia os olhos para o outro. Uma união novamente, mais forte, mais sólida. Amigos mais próximos, vizinhos de quarto, andares, tias, ex-moradores e as outras casas. As famílias longes, na qual ele também não pode voltar. Todos elevaram seus sentimentos e entendimentos a este lugar em um outro patamar. Sentimento este que foi amadurecendo até hoje.
Em um ano você volta a janela de sua casa e olha aqueles galhos que cresceram com aquele verde cintilante dando mais vida àquela árvore que parecia estar padecendo. Os antes calouros agora são veteranos que transmitem alguma motivação aos calouros que dão um gás necessário. É incrível as mudanças que ocorrem em tão pouco tempo. As contas com saldo surpreendentemente positivo, o diálogo para resolver problemas internos e externos. Não chegamos a um estado de perfeição, mas é nítido um clima de mudanças. Reformas a todo vapor não só nas paredes desta casa cheia, mas de pessoas, de celuenses.
O que eu deixo aqui é a lição que o Ceará nos deixou. A alegria e amizade de um menino, que não tinha como ser odiado por alguém junto ao compromisso e missões de um adulto. Poderíamos dizer sem titubear que o Ceará foi a CELU. Transformar todos à sua volta e assim transformar o mundo.